sábado, 15 de novembro de 2014

Enem 2013 - Questão 122 comentada

Enem 2013 - Questão 122 comentada

Capítulo LIV - A pêndula

Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, e a contá-las assim:

— Outra de menos...

— Outra de menos.

— Outra de menos.

— Outra de menos.

O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.

Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados.

ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 1992 (fragmento).

O capítulo apresenta o instante em que Brás Cubas revive a sensação do beijo trocado com Virgília, casada com Lobo Neves. Nesse contexto, a metáfora do relógio desconstrói certos paradigmas românticos, porque

a) o narrador e Virgília não têm percepção do tempo em seus encontros adúlteros.

b) como “defunto autor”, Brás Cubas reconhece a inutilidade de tentar acompanhar o fluxo do tempo.

c) na contagem das horas, o narrador metaforiza o desejo de triunfar e acumular riquezas.

d) o relógio representa a materialização do tempo e redireciona o comportamento idealista de Brás Cubas.

e) o narrador compara a duração do sabor do beijo à perpetuidade do relógio.

Resolução: D

Neste teste, a questão não é clara, pois em “desconstrói certos paradigmas românticos” não há precisão nem no verbo (“desconstruir” certamente não tem aqui o sentido preciso e complexo de que tal neologismo se reveste na filosofia de Jacques Derrida, que deu curso ao termo, hoje tão banalizado no jargão acadêmico, em que sua relação com o contexto de origem é nula)

nem no objeto desse verbo (não há qualquer indicação ou sugestão que permita entender de que “paradigmas românticos” se trate, pois estes são apenas indefinidos como “certos”). Também não é aceitável a resposta oficial, pois não se entende qual seja o “comportamento idealista” de Brás Cubas, que a “metáfora do relógio” redirecionaria. Trata-se de um teste confuso, que deveria ser anulado.


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