quarta-feira, 26 de março de 2014

Vestibular UERJ 2014 - Língua Portuguesa - Questão 1 comentada

UERJ Vestibular 2014 - Exame Discursivo de Língua Portuguesa - Questão 1 comentada.

Diálogo da relativa grandeza
Sentado no monte de lenha, as pernas abertas, os cotovelos nos joelhos, Doril examinava um louva-deus pousado nas costas da mão. Ele queria que o bichinho voasse, ou pulasse, mas o bichinho estava muito à vontade, vai ver que dormindo - ou pensando?

Doril tocava-o com a unha do dedo menor e ele nem nada, não dava confiança, parece que nem sentia; se Doril não visse o leve pulsar de fole do pescoço - e só olhando bem é que se via - era capaz de dizer que o pobrezinho estava morto, ou então que era um grilo de brinquedo, desses que as moças pregam no vestido para enfeitar.

Entretido com o louva-deus, Doril não viu Diana chegar comendo um marmelo, fruta azeda enjoada que só serve para ranger os dentes. Ela parou perto do monte de lenha e ficou descascando o marmelo com os dentes mas sem jogar a casca fora, não queria perder nada. Quando ela já tinha comido um bom pedaço da parte de cima e nada de Doril ligar, ela cuspiu fora um pedaço de miolo com semente e falou:

- Está direitinho um macaco em galho de pau.
Doril olhou só com os olhos e revidou:
- Macaco é quem fala. Está até comendo banana.
- Marmelo é banana, besta?
- Não é mas serve.

Ficaram calados, cada um pensando por seu lado. Diana cuspiu mais um caroço.
- Sabe aquele livro de história que o Mirto ganhou?
- Que Mirto, seu. É Milton. Mania!
- Mas sabe? Eu vou ganhar um igual. Tia Jura vai mindar.
- Não é mindar. É me-dar. Mas não é vantagem.
- Não é vantagem? É muita vantagem.
- Você já não leu o de Milton?
- Li mas quero ter. Pra guardar e ler de novo.
- Vantagem é ganhar outro. Diferente.
- Deferente eu não quero. Pode não ser bom.
- Como foi que você disse? Diz de novo?
- Já disse uma vez, chega.
- Você disse deferente.
- Foi não.
- Foi. Eu ouvi.
- Foi não.
- Foi.
- Foi não.
- Fooooi.

Continuariam até um se cansar e tapar o ouvido para ficar com a última palavra, se Diana não tivesse tido a habilidade de se retirar logo que percebeu a dízima. Com o pedacinho final do marmelo entre os dedos ela chegou-se mais perto do irmão e disse:
- Gi! Matando louva-deus! Olhe o castigo!
- Eu estou matando, estou?
- Está judiando. Ele morre.
- Eu estou judiando?
- Amolar um bicho tão pequenininho é o mesmo que judiar.

Doril não disse mais nada, qualquer coisa que ele dissesse ela aproveitaria para outra acusação. Era difícil tapar a boca de Diana, ô menina renitente. Ele preferiu continuar olhando o louva-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergou o corpo para o lado do sopro, como faz uma pessoa na ventania. O louva-deus estava no meio de uma tempestade de vento, dessas que derrubam árvores e arrancam telhados e podem até levantar uma pessoa do chão. Doril era a força que mandava a tempestade e que podia pará-la quando quisesse. Então ele era Deus? Será que as nossas tempestades também são brincadeira? Será que quem manda elas olha para nós como Doril estava olhando para o louva-deus? Será que somos pequenos para ele como um gafanhoto é pequeno para nós, ou menores ainda? De que tamanho, comparando - do de formiga? De piolho de galinha? Qual será o nosso tamanho mesmo, verdadeiro?

JOSÉ J. VEIGA
A máquina extraviada. Rio de Janeiro: Editora Prelo. 1968.
fole = papo
dizima = refere-se à dizima periódica, algo sem fim
judiar = maltratar
renitente = teimosa

Ele preferiu ficar olhando o louva-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergou o corpo para o lado do sopro, (l. 46-47)
Será que as nossas tempestades também são brincadeira? Será que quem manda elas olha para nós como Doril estava olhando para o louva-deus? (l. 51-52)
Nos dois trechos acima, há uma variação no envolvimento do narrador com a história que ele conta.
Explique em que consiste essa variação. Em seguida, indique o recurso gramatical usado para expressá-la.

Objetivo: Explicar a variação do envolvimento do narrador com a história narrada e indicar o recurso linguístico relacionado a essa variação.
Item do programa: A narrativa e seus elementos
Subitem do programa: Narrador

Comentário da questão:
No texto “Diálogo da relativa grandeza”, o narrador varia sua posição com referência ao enredo e aos personagens que ele constrói. Ora o narrador descreve as ações dos personagens de maneira mais objetiva e distanciada, ora ele se aproxima do personagem Doril e de seus pensamentos – aproximação que tem como efeito a fusão da sua voz com a do personagem. A narração mais objetiva pode ser observada no primeiro fragmento: “Ele preferiu ficar olhando o louva-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergou o corpo para o lado do sopro”. Já no segundo fragmento, o narrador se aproxima do personagem de tal maneira que chega a “intrometer-se” na história, identificando-se com Doril e com as suas indagações: “Será que as nossas tempestades também são brincadeira?” O recurso linguístico que expressa a variação do envolvimento do narrador com a história que ele conta é a substituição da narração em terceira pessoa pela narração em primeira pessoa, esta última evidenciada pelo emprego dos pronomes “nossas” e “nós”.
Fonte: http://www.vestibular.uerj.br/

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