Diálogo da relativa grandeza
Sentado no monte de lenha, as pernas abertas, os cotovelos nos joelhos, Doril examinava um louva-deus pousado nas costas da mão. Ele queria que o bichinho voasse, ou pulasse, mas o bichinho estava muito à vontade, vai ver que dormindo - ou pensando?
Doril tocava-o com a unha do dedo menor e ele nem nada, não dava confiança, parece que nem sentia; se Doril não visse o leve pulsar de fole do pescoço - e só olhando bem é que se via - era capaz de dizer que o pobrezinho estava morto, ou então que era um grilo de brinquedo, desses que as moças pregam no vestido para enfeitar.
Entretido com o louva-deus, Doril não viu Diana chegar comendo um marmelo, fruta azeda enjoada que só serve para ranger os dentes. Ela parou perto do monte de lenha e ficou descascando o marmelo com os dentes mas sem jogar a casca fora, não queria perder nada. Quando ela já tinha comido um bom pedaço da parte de cima e nada de Doril ligar, ela cuspiu fora um pedaço de miolo com semente e falou:
- Está direitinho um macaco em galho de pau.
Doril olhou só com os olhos e revidou:
- Macaco é quem fala. Está até comendo banana.
- Marmelo é banana, besta?
- Não é mas serve.
Ficaram calados, cada um pensando por seu lado. Diana cuspiu mais um caroço.
- Sabe aquele livro de história que o Mirto ganhou?
- Que Mirto, seu. É Milton. Mania!
- Mas sabe? Eu vou ganhar um igual. Tia Jura vai mindar.
- Não é mindar. É me-dar. Mas não é vantagem.
- Não é vantagem? É muita vantagem.
- Você já não leu o de Milton?
- Li mas quero ter. Pra guardar e ler de novo.
- Vantagem é ganhar outro. Diferente.
- Deferente eu não quero. Pode não ser bom.
- Como foi que você disse? Diz de novo?
- Já disse uma vez, chega.
- Você disse deferente.
- Foi não.
- Foi. Eu ouvi.
- Foi não.
- Foi.
- Foi não.
- Fooooi.
Continuariam até um se cansar e tapar o ouvido para ficar com a última palavra, se Diana não tivesse tido a habilidade de se retirar logo que percebeu a dízima. Com o pedacinho final do marmelo entre os dedos ela chegou-se mais perto do irmão e disse:
- Gi! Matando louva-deus! Olhe o castigo!
- Eu estou matando, estou?
- Está judiando. Ele morre.
- Eu estou judiando?
- Amolar um bicho tão pequenininho é o mesmo que judiar.
Doril não disse mais nada, qualquer coisa que ele dissesse ela aproveitaria para outra acusação. Era difícil tapar a boca de Diana, ô menina renitente. Ele preferiu continuar olhando o louva-deus. Soprou-o de leve, ele encolheu-se e vergou o corpo para o lado do sopro, como faz uma pessoa na ventania. O louva-deus estava no meio de uma tempestade de vento, dessas que derrubam árvores e arrancam telhados e podem até levantar uma pessoa do chão. Doril era a força que mandava a tempestade e que podia pará-la quando quisesse. Então ele era Deus? Será que as nossas tempestades também são brincadeira? Será que quem manda elas olha para nós como Doril estava olhando para o louva-deus? Será que somos pequenos para ele como um gafanhoto é pequeno para nós, ou menores ainda? De que tamanho, comparando - do de formiga? De piolho de galinha? Qual será o nosso tamanho mesmo, verdadeiro?
JOSÉ J. VEIGA
A máquina extraviada. Rio de Janeiro: Editora Prelo. 1968.
fole = papodizima = refere-se à dizima periódica, algo sem fim
judiar = maltratar
renitente = teimosa
era capaz de dizer que o pobrezinho estava morto,
Continuariam até um se cansar e tapar o ouvido para ficar com a última palavra,
qualquer coisa que ele dissesse
Será que as nossas tempestades também são brincadeira?
Nestas quatro passagens, retratam-se situações hipotéticas, apenas imaginadas pelo narrador ou pelos personagens. Caracterize a forma linguística usada em cada uma para exprimir suposição em lugar de certeza.
Objetivo: Apontar as marcas de subjetividade reveladoras de pontos de vistae julgamentos do enunciador.
Item do programa: Formas de enunciação
Subitem do programa: Marcas de opinião
Comentário da questão:
Os trechos selecionados se referem não a fatos reais, mas a pensamentos do narrador e de um dos personagens. São suposições apenas, expressas por meio das expressões de dúvida “Era capaz” e “Será que”, do futuro do pretérito em “continuariam” e do modo subjuntivo em “dissesse”.
Fonte: http://www.vestibular.uerj.br/
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